O livro de Daniel

Pr. Valmir Nascimento


O Livro de Daniel é composto de doze capítulos. Eles percorrem um longo período histórico que começa com a primeira invasão babilônica ao Reino de Judá (605 a.C.), até a queda da Babilônia diante de Ciro da Pérsia (536 a.C.).


O escrito bíblico narra a trajetória de Daniel e de seus amigos advindos da Terra de Israel, destacando os desafios culturais, políticos, morais e espirituais que suportaram em terra estrangeira. Ao longo de todo esse tempo o profeta viveu e serviu com fidelidade a Deus perante as cortes imperiais, da juventude ao fim dos seus dias.


Escrito no período pós-exílio, o livro reflete não apenas eventos históricos, mas também revela visões proféticas que têm inspirado incontáveis gerações ao longo dos séculos. Registra as mensagens proféticas que o Senhor lhe revelou, inclusive interpretações de sonhos, visões de animais simbólicos e uma visão detalhada dos eventos escatológicos. Por isso, é chamado de “Apocalipse do Antigo Testamento”[1], guardando um grande paralelo com a revelação ao apóstolo João no Novo Testamento.


Autoria e mensagem


Quem escreveu o livro de Daniel?

Algumas correntes acadêmicas argumentam que o livro pode ter sido escrito por múltiplos autores[2] em diferentes períodos, com algumas partes sendo compostas durante o período do exílio babilônico e outras mais tardiamente.

Outra razão para esse entendimento é a presença de diferentes línguas ao longo do texto. O livro contém partes escritas em hebraico, que é a língua tradicional dos textos bíblicos do Antigo Testamento, mas também inclui seções em aramaico.


Não obstante, é entendimento majoritário entre estudiosos judeus e cristãos que o autor deste livro é o próprio Daniel. Em primeiro lugar, temos evidências internas que mostram a sua autenticidade (Dn 8.15; 27; 9.2; 10.2). Em segundo lugar, o livro exibe uma unidade; uma mensagem teológica coesa, enfatizando a soberania de Deus sobre os reinos terrenos e a importância da fidelidade mesmo em meio à adversidade. Essa coesão é uma clara evidência de uma visão teológica única e consistente. Em terceiro lugar, como argumento cumulativo, temos o próprio testemunho de Jesus, no Novo Testamento, referendando a autenticidade da mensagem do profeta (Mt 24.15; Mc 13.14). Jesus de Nazaré claramente dá endosso para a legitimidade de Daniel como profeta e para a veracidade da sua mensagem[3].


Qual seria a mensagem principal presente neste importante livro?

Sem dúvida, o tema teológico dominante em Daniel é a soberania de Deus[4]: "o Deus Altíssimo domina sobre os reinos dos homens" (5.21). Mesmo as revelações apocalípticas dadas a Daniel, desvendando os mistérios divinos e os acontecimentos futuros, servem para mostrar que Jeová é o Senhor de todas as coisas e a história do mundo está em suas mãos. Enquanto os reinos humanos são passageiros, o governo divino é eterno.


Na medida em que lemos o livro, temos a nítida impressão de que o Senhor inspirou Daniel a registrar suas experiências e a relatar as visões proféticas recebidas, para que o povo de Deus mantivesse a esperança viva, aguardando o cumprimento das promessas. Mesmo que os hebreus tivessem sido levados cativos e o governos do mundo houvessem recebido poder para tomar a terra prometida e a dominar por algum tempo, o Deus Altíssimo conduz todas as coisas.


Dessa mensagem teológica central, irradia-se uma mensagem subjacente para a vida prática: a fidelidade dos servos de Deus. A dramática vida de Daniel na Babilônia tem como pano de fundo a soberania divina. Mas, enquanto os homens dominam essa terra, aquele que serve ao Senhor mantém sua fidelidade e integridade. Mesmo exilados em terra estrangeira, passando provações e perseguições, podemos proteger os nossos corações e mantermos o compromisso de fé incontaminável.


A mensagem prática que ressai do livro de Daniel é a busca por uma vida autêntica, de excelência e bravura. Esse fragmento das Escrituras destaca a necessidade do crente manter a fé inabalável em momentos de adversidades e nos recorda que podemos ser íntegros em qualquer ambiente, lembrando que Deus é soberano e o Senhor da história, pois o reino, o domínio e a majestade dos reinos lhe pertencem (Dn 7.27).


Em essência, Daniel é o protagonista do seu livro, mas Deus é o protagonista de todas as coisas. Durante a nossa jornada nesse mundo, buscamos uma fidelidade inabalável até o fim.


Estrutura e peculiaridades


Por se tratar de um documento histórico e ao mesmo tempo profético, é possível dividir o livro em duas seções que formam um todo perfeito.

Na primeira parte (capítulos 1 a 6), narram-se os fatos e as experiências importantes na vida de Daniel dentro da Babilônia. Na segunda (capítulos 7 a 12), estão as visões e as mensagens proféticas, que revelam acontecimentos dos séculos seguintes e até o tempo do fim.


Uma das peculiaridades do livro de Daniel é que, embora seja considerado um profeta, Daniel não profetizou diretamente ao povo, como outros profetas do Antigo Testamento. Em vez disso, ele serviu como um conselheiro e intérprete de sonhos e visões para reis e governantes da Babilônia. Na Bíblia Hebraica, Daniel não aparece, por isso, entre os Profetas (Nebhiim), mas entre os Escritos (Kethubhiim).


Daniel foi um estadista, um homem público levantado por Deus para servir nas cortes babilônicas. Sua função profética era diferente de outros profetas do Antigo Testamento. Embora não fosse um profeta itinerante, foi poderosamente usado por Deus para fazer saber o sentido de sonhos e visões que afetariam Israel e os reinos humanos. Isso mostra que a função profética também possui um caráter público.


Outra característica notável deste livro é o uso de duas línguas diferentes. A maior parte, do capítulo 2 ao capítulo 7, está escrita em aramaico. Os capítulos 1 e 8 até o final do livro são escritos em hebraico. Essa mudança de língua reflete a natureza do livro, que abrange eventos ocorridos na Babilônia e profecias relacionadas a Israel.


COMPREENDENDO O CONTEXTO


O contexto histórico


No pano de fundo histórico dos primeiros capítulos do livro de Daniel há um cenário de agitação e instabilidade, decorrente da disputa pelo predomínio político na região. No século VII a.C., o Império Assírio estava no auge de seu poder. Liderados por reis como Assurbanípal e Assaradão, os assírios tinham conquistado vastas extensões de território, incluindo o Reino do Norte de Israel e muitas regiões do Oriente Médio.


Durante esse período, o Egito, liderado pelo Faraó Neco II, buscava expandir sua influência na região. No entanto, seus esforços frequentemente colidiam com os interesses assírios. A Batalha de Megido em 609 a.C. é um exemplo notável, onde as forças egípcias tentaram intervir no conflito entre a Assíria e a Babilônia, mas foram derrotadas pelos assírios.


Enquanto isso, a Babilônia, liderada por Nabucodonosor II, emergia como uma potência em ascensão. Havia se libertado do domínio assírio e começava a afirmar sua autoridade na região. A Batalha de Carquemis, em 605 a.C., foi um momento crucial nessa disputa. Nabucodonosor II derrotou as forças egípcias de Neco II, consolidando ainda mais o domínio babilônio. Este conflito é mencionado na Bíblia em Jeremias 46.2


Liderada por Nabucodonosor, o exército babilônico invadiu e sitiou Jerusalém no terceiro ano do reinado de Jeoaquim (2Rs 24:1-6; 2Cr 36:5-7). Era o início das invasões babilônicas ao Reino de Judá e sua capital. Posteriormente, em duas outras oportunidades a cidade voltou a ser invadida: em 597 a.C. (2Rs 24:10-14), e a terceira, a maior de todas elas, em 586 a.C., ocasião em que a cidade foi arrasada e o templo destruído.


Deus castiga seu povo


Jeoaquim era filho de Josias e sucedeu seu pai como rei de Judá aos vinte e cinco anos de idade (2Rs 23.36). Foi um rei ímpio que não andou nos caminhos do Senhor. Seu nome era Eliaquim (2Rs 23).


O profeta Jeremias proclamou a mensagem de Deus, alertando Jeoaquim e o povo de Judá sobre a vinda do juízo divino devido à idolatria e injustiça. Ele exortou o rei e o povo a se arrependerem e a voltarem-se para Deus. Jeoaquim não apenas rejeitou as palavras do profeta, mas também queimou o rolo no qual a Palavra de Deus estava escrita. (Jr 36.20-26). Infelizmente, muitas vezes, aqueles que deveriam zelar pela Palavra de Deus, acabam por menosprezá-la.


Jeoaquim era um oportunista político. Depois de ser tributário da Babilônia por três anos, recebeu-se contra o seu suserano em uma tentativa de rebelião, embora o profeta Jeremias houvesse profetizado sobre os resultados dessa política (Jr 22.18). Em consequência, Nabucodonosor invade Jerusalém em 597 a.C. Jeoaquim morre naquele ano[5].


No início do livro, Daniel é enfático ao escrever: "E o Senhor entregou nas suas mãos a Jeoiaquim, rei de Judá, e uma parte dos utensílios da casa de Deus, e ele os levou para a terra de Sinar, para a casa do seu deus, e pôs os utensílios na casa do tesouro do seu deus" (Dn 1.2).


Não foi Nabucodonosor que a conquistou, mas o Senhor que a entregou.

Israel havia virado as costas para Deus. Os profetas advertiram repetidamente o povo de Israel sobre as consequências de sua infidelidade a Deus. A desobediência persistente, a idolatria e a injustiça social foram citadas como razões para o juízo divino.


Em vez de arrependimento, os líderes e a nação endureceram o coração para não seguirem os seus estatutos. As Escrituras registram que: "... todos os chefes dos sacerdotes e o povo aumentavam cada vez mais a sua infidelidade, seguindo todas as abominações dos gentios; e profanaram a casa do Senhor, que ele tinha santificado para si em Jerusalém" (2Cr 36.14).


Por essa razão o Senhor estava disciplinando o povo da promessa, ao permitir o seu cativeiro e a destruição da cidade. A Bíblia diz que o Senhor corrige a quem ama (Hb 12.6).


É preciso concordar com David Helm quando afirma que essa expressão "E o Senhor entregou (…)" - em algumas traduções: "E o Senhor deu (...)" é para que saibamos que quem estava fazendo a roda da história girar era Deus, para realizar seus propósitos eternos[6].


Essa afirmação evoca um sentimento de conforto para dar ânimo aos leitores que estão esperando pela chegada das promessas de Deus; um bálsamo em meio às circunstâncias preocupantes. Segundo o autor, "quando tudo parecia perdido, e quando parecia que a vida não valia a pena, Deus ainda assim estava realizando seus propósitos"[7].


A RELEVÂNCIA DO LIVRO DE DANIEL PARA OS NOSSOS DIAS


Um livro para todas as épocas


O livro de Daniel é um livro para todas as épocas. Retirado à força da sua casa, quando ainda tinha cerca de quatorze anos, Daniel é conduzido até uma terra estrangeira. Dentro de uma cultura hostil, cercado por inimigos, enfrentou diversos ataques e desafios ao longo da sua vida. Esteve exilado mais de setenta anos até o fim da vida. Enfrentou conspirações, mudanças culturais e políticas. Foi pressionado de diversas formas, mas não negou a sua fé.


Segundo Stuart Olyott, Daniel mostra-nos como viver para Deus, quando tudo está contra nós. De suas páginas, aprendemos como entoar o hino do Senhor em uma terra estranha. Sempre esteve rodeado do mal e dos ataques, na juventude, na maturidade e na velhice[8]. Em tempo algum esteve livre da tentação e das seduções. Mas, em tudo, permaneceu firme e fiel. Não se portou como vítima ou como murmurador. Antes de ser cativo do imperador, sua consciência era cativa à Palavra de Deus.


Embora centenas de anos tenham se passado desde a sua época, sua trajetória é um exemplo inspirador para os dias em que estamos vivendo. O livro de Daniel, por ser a Palavra de Deus, continua atual e a sua mensagem urge para esse tempo. "Daniel tem uma mensagem ética clara para o nosso tempo. Revela-nos como podemos ser íntegros na adversidade ou na prosperidade"[9].


O período em que o profeta viveu foi um dos mais turbulentos em termos de mudanças geopolíticas na região do Oriente Médio e no mundo antigo. Ele conviveu com um mundo cujas características se assemelham com aquelas que hoje nos deparamos.


Em primeiro lugar, Daniel viveu em um mundo frágil e cheio de incertezas. A Babilônia era palco das transformações e agitações globais da sua época. Daniel viu impérios desmoronarem e reis caírem, enquanto as pessoas sobreviviam de expectativas aterrorizantes, onde imperava a incerteza.


De igual forma, estudiosos têm denominado o período recente, principalmente pós-pandemia, como Mundo BANI, referindo-se aos desafios enfrentados no século presente. A palavra BANI é um acróstico, formada pelas iniciais das palavras: Brittle, Anxious, Non-linear, Incomprehensible; em português, frágil, ansioso, não linear e incompreensível. A trajetória de Daniel, irá nos ensinar a encontrar resistência e coragem em dias ruins e esperança numa época de desespero.


Em segundo lugar, o profeta presenciou um mundo com constante transição de poder. Daniel serviu nos impérios babilônico e medo-persa com a mesma fé e fidelidade. Nenhum soberano o fez mudar suas convicções, tampouco o poder o seduziu. Com ele somos lembrados de que os reis, presidentes e governantes desta terra passam, mas o Senhor permanece para sempre. Não importa quem esteja no poder político, o cristão mantém sua esperança sempre em Deus.

Em terceiro lugar, Daniel viveu numa época cheia de conflitos e violência. Ele viu de perto os horrores da destruição provocada pelas guerras entre nações e sentiu na pele o sofrimento decorrente do exílio.


Semelhantemente, o mundo contemporâneo continua a ser palco de conflitos internos e internacionais, ações terroristas e violências de todas as formas, provocando dor e migração forçada. Isso nos faz recordar das pessoas que se encontram nessas situações, a fim de orar, buscar soluções e apoiar.

Em quarto lugar, o mundo de Daniel era hostil aos valores judaicos. Com isso, podemos traçar um paralelo da época de Daniel com o panorama da cultura contemporânea, essencialmente hostil à visão de mundo judaico-cristã, em nome do relativismo e do secularismo.


Da mesma forma que aquele jovem hebreu foi pressionado a abandonar sua crença em razão das pressões culturais e religiosas dentro da Babilônia, os cristãos de hoje estão enfrentando ataques severos da cultura anticristã, a exemplo do relativismo e do secularismo, dentre outras correntes filosóficas. O livro de Daniel nos ensina a ter sabedoria e inteligência espiritual para combater as estratégias do inimigo no tempo presente.


Portanto, a mensagem de Daniel transcende à época em que foi escrito. Sua narrativa rica e exemplar, a partir da jornada dos jovens hebreus, nos oferece hoje um manual singular sobre diversos assuntos da vida cristã em sociedade, tratando temas relevantes como juventude corajosa, vida acadêmica, política externa, acordos internacionais, batalha espiritual e profecia[10]. Também engloba vida de oração, santidade, estudo das Escrituras, relacionamentos e humildade.


Devoção e testemunho público


A inspiração do livro de Daniel vai além da devoção pessoal. O seu testemunho nos mostra que a sua convicção não estava confinada ao ambiente privado, preferindo enfrentar os leões a renunciar uma confissão pública da fé. Ele é um grande exemplo bíblico de como podemos usar a sabedoria e o conhecimento de Deus para testificar em diversos lugares da sociedade.

Nas palavras de John Lennox:


O que torna notável a história de fé desses jovens é que eles não só continuaram a devoção particular prestada a Deus que desenvolveram na terra natal, mas também mantiveram um notório testemunho público em uma sociedade pluralista que se tornava cada vez mais antagônica à fé deles. É por isso que sua história tem uma mensagem tão poderosa para nós hoje. As fortes correntezas do pluralismo e do secularismo na sociedade ocidental contemporânea, reforçadas pela correção politicamente paralisante, jogam cada vez mais para escanteio a expressão da fé em Deus, confinando-a, se possível, à esfera particular[11].


Assim, o livro de Daniel possui uma mensagem singular para a igreja na atualidade. A sua vida na Babilônia é um exemplo de coragem, fé e integridade diante de circunstâncias adversas. Ele nos ensina a confiar em Deus em todas as situações e a buscar a sua vontade em nossa vida.


[1] SWIN, Roy E. Comentário Bíblico Beacon. Vol. 4. Rio de Janeiro: CPAD, 2016, p. 497.

[2] BALDWIN, Joyce G. Daniel - Introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 42.

[3] SWIN, 2016, p. 499.

[4] BARKER, Kenneth (Org.). Bíblia de Estudo NVI. São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 1453.

[5] HARRISON, R. K. Tempos do Antigo Testamento: um contexto social, político e cultural. Rio de Janeiro: CPAD, 2010, p. 257.

[6] HELM, David. Daniel para você. São Paulo: Vida Nova, 2018, p.23

[7] Idem.

[8] OLYOTT, Stuart. Ouse ser firme: o livro de Daniel. São José dos Campos: Editora Fiel, 1996, p.10.

[9] LOPES, Hernandes. Daniel - o homem amado no céu. São Paulo: Hagnos, 2005, p. 15.

[10] LOPES, 2005, p. 17.

[11] LENNOX, 2017, p. 15,16.

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